A família e a vocação – Lição 1

Maria Sonia escreveu-me:

"Sr. Joel, gostaria de sugerir que V.Sa. discorra, a miúde, sobre as influências, negativas ou positivas, que os pais possam ter sobre a educação dos filhos. E o que isso pode acarretar para a vida adulta destes filhos. Outrossim, como o exemplo dos pais pode ou não influênciar no desenvolvimento vocacional dos filhos."

Para atender a tão pertinente sugestão, passarei a escrever alguns artigos que aclarem meu pensamento a respeito da relação entre a família e a vocação pessoal do indivíduo.

Para tanto, pareceu-me adequado imitar a forma de textos que li na época da faculdade e que tanto me ajudaram na compreensão de muitas das questões que irão surgindo nos artigos que irão se sucedendo. Vou chamar cada artigo de “Lição”. Pelo número da lição, será possível fazer idéia do quanto já caminhei neste assunto.

Lição 1 – a questão da “reação global da personalidade”

Para uma adequada compreensão do que virá a seguir, um conceito deve ser assimilado de maneira clara e firme: o conceito de “reação global de toda a personalidade”. Por “global” quero dizer algo assim como “corpo e alma juntos”, já que a personalidade é composta de elementos físicos e não físicos, isto é, assimiláveis pelo que no homem há de corpóreo e incorpóreo. De modo que quero significar que “reação global de toda a personalidade” é a resposta (ou envolvimento) do sujeito inteiro (e não apenas uma parte sua) com o estímulo que o afeta (ou com a situação momentânea na qual se encontre).

A reação global de toda a personalidade ocorre quando a situação provoca no indivíduo a unificação do sentimento, da vontade e da inteligência. Esta unificação dá-se em várias situações, com destaque para as de amor e de medo extremo. Apenas para clareza do conceito, vou ilustrar recorrendo primeiro a uma situação de medo.

Há algum tempo (uns dois anos, talvez) um rapaz de São Paulo foi morto em uma entrada de favela no RJ. Ele foi ao RJ de carro para assistir a um jogo no Maracanã. Ao sair de lá, não conhecendo muito bem a cidade, entrou numa rua que conduzia a uma favela. Tão logo entrou lá, foi alvejado por balas, vindo a falecer.

Suponha que você, leitor, esteja num local parecido com aquele onde o rapaz foi morto. É noite e você está perdido, sem saber que direção tomar. Vê um ou outro morador do local olhando para você e sabe que se parar o carro e descer para obter alguma informação de como sair dali, caso a obtenha, sabe que ela não é confiável. Três coisas se passam no seu íntimo: sente que a situação em que está diz respeito exclusivamente a você; a fortíssima vontade de sair de lá o mais rápido possível; entende que está em perigo mortal. Portanto, nesta situação, dá-se a vivência da unidade composta de sentimento, vontade e entendimento.
Unificação parecida desses três aspectos da alma ocorre na vivência de amor, quando você se liga afetivamente a alguém que passa a ocupar o centro de seus interesses, ofuscando tudo o mais. Você então sente que tal pessoa é o objeto preferencial de sua atenção, ou seja, que ela é importantíssima para você; quer que ela o aceite; pensa o tempo todo em como fazer para ser correspondido em seu amor.

A dificuldade que nós adultos experimentamos em dar uma “resposta global” a algum estímulo resulta do fato de já terem-se realizado diferenciações em nossa inteligência. Adultos, somos capazes separar os vários componentes de uma mesma vivência e nos atermos a um ou outro deles. A criança, ao contrário, não é ainda capaz de operação mental deste tipo, por não ter ainda vivenciado os momentos em que vão se dando as diferenciações (ou mutações) em sua inteligência. Por isso, quanto mais novo o indivíduo, mais global é sua reação a estímulos. A reação de um bebê aos estímulos é global, enquanto a de um adulto, não. A globalidade da reação diminui na medida em que vão se dando as progressivas diferenciações na inteligência, processo que se conclui na idade adulta.

Quando um bebê sente fome, ele se sente globalmente ameaçado, tanto quanto você ou eu sentiriamos perdidos nas ruas de alguma favela do RJ, notória pela presença de bandidos. O mesmo quando ele sente sede ou algum tipo qualquer de desconforto. Para ele, não existe diferença entre fome, sede, sono, fralda molhada, agulha na fralda — para ele, é tudo muito ameaçador. Cada uma dessas situações provoca-lhe a impressão de que sua vida está ameaçada. Daí que quanto mais se retarde atender a um bebê quando ele chora, pior para seu desenvolvimento. O impacto do não atendimento imediato diminui com o aumento de sua idade, do que falarei quando estiver de acordo com a natureza do artigo.

No ser humano adulto ocorrência de uma tal unificação não é a norma, mas coisa episódica. Basta comparar: lembre-se de uma intensa alegria que sentiu quando era criança quando, pelo Natal, ganhou um presente que coincidia com o que você desejava maximamente? Que coisa, pessoa ou situação, hoje em dia, seria capaz de provocar-lhe alegria tão global quanto aquela que sentiu naquele Natal? Difícil responder, não é mesmo?

Isto é assim porque, durante o processo de crescimento, paralelamente ao desenvolvimento corporal (calcificação dos ossos, em princípio mais frágeis e cartilaginosos; fortalecimento muscular; aumento das dimensões do corpo, etc.), vão ocorrendo mutações na inteligência. Primeiro, dá-se a especialização dos sentidos exteriores, como a vista e audição, que vão permitindo o reconhecimento personalizado da figura materna, depois a paterna e em seguida dos demais componentes do círculo familiar; em seguida, anos após, a distinção entre o que é “eu” e o que não é “eu”; posteriormente, dá-se o desenvolvimento do raciocínio baseado na própria estrutura corpórea do sujeito (“operatório concreto”, na linguagem de Piaget) e, de mutação em mutação, atinge-se a capacidade para raciocínios totalmente abstratos, para os quais a matemática educa maximamente.

Quanto maior seja o número de ocorrências de diferenciação da inteligência, menos global vai se tornando a reação a estímulos. Portanto, da vida intra-uterina ao estágio de bebê, deste à condição de criança, desta à de púbere, deste à de adolescente, deste à de adulto, a globalidade da reação da personalidade vai diminuindo. Pois sendo "abstrair" o mesmo que "separar", da infância à idade adulta dá-se o aumento da capacidade para "separar o que interessa" da experiência sem responder a ela de maneira física e mentalmente unificada. Como dizia um antigo colega, um dos primeiros alunos de sua turma de Odontologia, que pegou sua namorada com outro: "Ruim no amor, bom nos estudos".

Compreensível portanto que quanto menos hostil for a conduta com a criança, melhor será para o seu desenvolvimento cognitivo, psicológico e psico-social. Inversamente, quanto mais hostil for a relação que se estabeleça com ela, mais prejudicado estará o desenvolvimento de sua personalidade. E claro também que a comunicação com o indivíduo, quanto mais novo ele seja, dá-se mais por uma questão de presença e do que de discurso. Tanto que não há mal, em termos absolutos, que se usem palavras inadequadas para se dirigir à criança, desde que a atitude seja amorosa. Como uma orientanda, mãe de um único filho, a quem chamava "meu porquinho". Claro que sugeri que ela escolhesse outra substantivo para nomeá-lo em público, caso contrário ele teria desnecessários problemas quando entrasse na fase escolar.

Deve-se ter em mente que a amabilidade ou hostilidade na relação e tratamento com a criança não impedem o desenvolvimento de sua inteligência, esta entendida como a simples capacidade de criar silogismos, de “pensar logicamente”. O que a hostilidade provoca é a emergência, na alma da criança, do desejo por alguma forma de mal. Numa linguagem técnica, pode-se dizer que a falta de atenção amorosa à criança faz com que aquelas, mais dotadas para o pensamento lógico, tenham como fins de suas intenções não o bem do próximo, mas o seu mal. Por isso há indivíduos que, não obstante terem sido agraciados por boas condições sociais, boa educação, etc., enveredam pelo caminho do mal. Sua inteligência (causa eficiente de suas ações) não atua em vista do bem (causa final), mas por causa de algum tipo de ressentimento e desejo de vingança.

Por isso, é sempre melhor, para o indivíduo e para a sociedade em torno, que ele, desde criança, esteja sendo cuidado por quem seja mais amorosamente atencioso com ele, quer se trate do pai ou da mãe.

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